O mercado de trabalho brasileiro enfrenta, há alguns anos, uma série de desafios que vão muito além do contexto de pleno emprego, onde existem mais vagas do que pessoas para trabalhar. Muitos empresários e gestores me relatam grande dificuldades em encontrar profissionais dispostos a aceitar as ofertas de emprego, mesmo aquelas que não necessita de nenhuma qualificação. Esse cenário revela uma complexa interseção de fatores que vão muito além do que o problema fosse o Bolsa Família ou Auxilio Brasil, mas permeia desde a precarização dos vínculos empregatícios até a desvalorização dos trabalhadores, passando pelo posicionamento autoritário de muitas lideranças, o valor e o significado do trabalho e pelo descompasso entre a formação acadêmica e as demandas reais do mercado.

Historicamente, o processo de qualificação profissional no país ocorria de forma complementar à vivência prática, possibilitando que o trabalhador se desenvolvesse no ambiente real de trabalho e depois buscasse especializações para aprimorar sua carreira. Atualmente, observa-se uma tendência em que os profissionais se formam sem o respaldo de experiências significativas, o que contribui para a desconexão entre teoria e prática. Esse distanciamento gera situações paradoxais: por exemplo, profissionais altamente qualificados em determinadas áreas acabam migrando para funções consideradas “menos qualificadas” ou não aproveitam plenamente seu potencial, minando tanto seu crescimento pessoal quanto a evolução econômica e social do país.

Outro elemento central nesse debate é a influência das condições de trabalho e da gestão empresarial. Ambientes pautados por lideranças autoritárias e relações hierárquicas rígidas tendem a desmotivar o colaborador, que passa a questionar o valor do trabalho em contextos de baixa remuneração e falta de reconhecimento. Assim, a dificuldade em atrair e manter talentos não se resume à oferta de vagas, mas se reflete em uma disputa por condições dignas e que possibilitem o desenvolvimento sustentável dos profissionais, por exemplo menor carga horaria de trabalho, por ter um foco na própria saúde e bem estar.

CENÁRIO ATUAL DO MERCADO DE TRABALHO

Relatos do setor empresarial apontam que, mesmo com o aumento do número de oportunidades de emprego, a adesão dos profissionais às vagas ainda é baixa. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), relativos ao início de 2024, indicam que cerca de 40 milhões de brasileiros atuam na informalidade, sem os benefícios de um contrato formal. Mesmo entre as vagas oficialmente disponíveis, muitas se caracterizam por oferecer contratos inseguros e a ausência de direitos trabalhistas, como é frequentemente o caso dos contratos sob o regime de Pessoa Jurídica (PJ).

Além disso, a taxa nacional de desemprego, que se situa em 7%, com 7 milhões e 700mil pessoas, esconde diferenças marcantes entre as regiões do país. Em localidades com características de pleno emprego, como na região Sul (3,8%), Centro-Oeste (5,0%) e Sudeste (5,9%), a oferta de profissionais é insuficiente e, em muitos casos, esses trabalhadores não correspondem completamente às exigências das vagas oferecidas. Essa realidade evidencia um descompasso entre a disponibilidade de mão de obra e as qualificações demandadas pelo mercado, contribuindo para a tensão no setor e a dificuldade de preenchimento das vagas.

A INFLUÊNCIA DOS PROGRAMAS SOCIAIS, O CUIDADO DOS PAIS E O MUNDO DIGITAL

  • Crítica ao Bolsa Família

Uma narrativa comum em certos setores da sociedade é a de que programas sociais, como o Bolsa Família, desestimulam a busca por emprego formal. Em 2024, os gastos com o Bolsa Família ultrapassaram R$170 bilhões, e esse argumento tem sido usado por alguns empresários para explicar a baixa adesão ao mercado de trabalho. No entanto, essa visão é equivocada. A ideia de que as pessoas preferem receber R$600 do benefício a conquistar um salário mínimo de R$1.518 — ou até mais — não se sustenta. Pelo contrário: a maioria das pessoas deseja melhorar de vida. A dificuldade de ingresso no mercado formal está ligada a fatores estruturais muito mais complexos do que a simples escolha individual.

Muitas dessas pessoas vivem em condições precárias, dividindo pequenos espaços com vários familiares e assumindo responsabilidades intensas de cuidado, como a criação dos filhos e o amparo a parentes idosos ou doentes. Nesse contexto, a rigidez de uma jornada formal de trabalho, que exige dedicação de 8 a 12 horas por dia, torna-se inviável. Além disso, a ausência de suporte adequado para cuidados e o custo da mobilidade urbana são barreiras reais. Para muitas famílias, os R$600 do Bolsa Família, complementados por pequenos trabalhos informais, permitem uma adaptação mais flexível à realidade dura que enfrentam. Assim, o programa social garante não apenas a subsistência, mas também a autonomia mínima para equilibrar trabalho, cuidado e sobrevivência.

  • A Bolha Cultural na Formação dos Jovens

O cuidado excessivo na criação dos filhos, aliado à desvalorização de profissões consideradas “menos qualificadas” — como as de metalúrgico, soldador ou operador de caixa — contribui para a formação de uma visão limitada sobre o mercado. Pais superprotetores acabam por criar uma bolha que afasta os jovens dessas ocupações, gerando uma lacuna na oferta de profissionais para funções essenciais, mas socialmente desvalorizadas.

Além disso, muitos pais, em uma tentativa de proteger os filhos dos desafios e dificuldades que eles próprios enfrentaram no ambiente de trabalho, acabam evitando que eles entrem cedo no mercado ou tenham contato com experiências profissionais mais simples. Isso compromete a formação da noção de valor do trabalho: o entendimento de que o trabalho tem um papel essencial na construção do caráter, no desenvolvimento de competências, na percepção de esforço, tempo, dedicação e na valorização das conquistas.

  • A Vida Idealizada nas Redes e o Impacto na Juventude

A crescente exposição às redes sociais tem criado uma distorção significativa entre a vida que muitos jovens visualizam — cheia de sucesso, liberdade, consumo e experiências extraordinárias — e a realidade concreta que encontram ao ingressar no mundo do trabalho e da vida adulta. Essa comparação constante, alimentada por algoritmos que mostram apenas recortes positivos e momentos de conquista, provoca frustração, desânimo e uma sensação de inadequação.

Muitos jovens passam a acreditar que o sucesso deve ser imediato, sem esforço ou processos demorados. Quando se deparam com a complexidade do cotidiano, com a exigência de disciplina, paciência e trabalho árduo, podem sentir-se derrotados ou enganados. Isso intensifica sentimentos de ansiedade, baixa autoestima e até mesmo aversão ao trabalho, já que ele parece não estar à altura da “vida ideal” projetada digitalmente.

O PAPEL DA LIDERANÇA E GESTÃO DAS EMPRESAS

Um aspecto crucial e frequentemente negligenciado na discussão sobre o mercado de trabalho é a postura e o posicionamento da liderança nas empresas. Essa seção destaca como a gestão interna impacta diretamente a motivação e o comprometimento dos colaboradores:

1. Posturas Autoritárias e Relacionamentos Hierárquicos Desfavoráveis

Em muitas empresas, a liderança adota um estilo autoritário e coercitivo, onde o poder hierárquico se sobrepõe à valorização do colaborador. Essa postura gera ambientes de trabalho com comunicação deficiente, tomada de decisão centralizada e, consequentemente, colaboradores que se sentem desrespeitados e desmotivados para contribuir de forma plena. Esse modelo de gestão não favorece o desenvolvimento pessoal e profissional, resultando em alta rotatividade e na procura por alternativas informais que garantam maior autonomia.

2. Impacto na Produtividade e na Retenção de Talentos

Empresas que não investem em uma cultura organizacional inclusiva e respeitosa acabam pagando um alto preço em termos de produtividade e retenção de talentos. Quando os colaboradores se sentem valorizados e têm oportunidades de crescimento, a satisfação no ambiente de trabalho aumenta, refletindo positivamente nos resultados da empresa. Por outro lado, a ausência de uma estratégia que priorize o bem-estar e a dignidade do trabalhador contribui para a precarização dos vínculos de emprego, agravando o quadro de informalidade e baixos salários.

3. A Necessidade de uma Gestão Inovadora e Humana

Para transformar essa realidade, é imperativo que as empresas repensem seu modelo de gestão. Investir na capacitação dos líderes e promover uma cultura de feedback, escuta, transparência, confiança, reconhecimento, jornada de desenvolvimento podem e vão reverter esse cenário de total desmotivação. Essas praticas não somente encoraja o protagonismo dos colaboradores, reconhece seus esforços e ofereça um ambiente de trabalho saudável possibilitando o interesse de novos profissionais, mas também mantem os atuais, contribuindo para o desenvolvimento sustentável e de longo prazo de qualquer negócio.

DESCOMPASSO ENTRE FORMAÇÃO ACADÊMICA E DEMANDA DO MERCADO

  • Foco em Ensinos Não Essenciais e a Falta de Integração com a Prática

Um dos desafios atuais é a escolha de formações acadêmicas que, muitas vezes, não acompanham as reais demandas do mercado. Observa-se que boa parte dos estudantes e profissionais investem em cursos e graduações que, na prática, não se traduzem em um desenvolvimento pessoal, econômico ou social consistente. Essa tendência tem levado a situações paradoxais, como o de indivíduos que se formam sem terem adquirido experiência prática relevante, ou que atuam em áreas muito distintas da sua formação.

Exemplos dessa dissonância são comuns: há casos em que profissionais se formam em engenharias e, em seguida, acabam exercendo funções de motorista de aplicativo. Essa situação evidência que o ensino, isoladamente, não é suficiente sem a complementação pela prática e pela construção da experiência profissional.

Historicamente, havia a expectativa de que o indivíduo iniciasse sua trajetória profissional e, posteriormente, buscasse aprimoramento por meio de cursos ou especializações, criando assim um ciclo virtuoso de experiência e capacitação. Hoje, muitos se formam sem percorrer esse caminho, o que fragiliza a capacidade de aplicar o conhecimento teórico em contextos que exigem habilidades práticas e adaptabilidade, diminuindo as oportunidades de promoção e de crescimento profissional.

  • Reflexo no Desenvolvimento Pessoal e Econômico

O descompasso entre a formação oferecida pelo sistema educacional e o que o mercado de trabalho demanda reflete-se diretamente na produtividade e na competitividade do país. Enquanto muitos buscam qualificações que não agregam valor às funções essenciais da economia, há uma carência de profissionais capacitados em áreas estratégicas que impulsionariam o desenvolvimento econômico e social. Essa realidade impõe a necessidade de uma revisão dos currículos acadêmicos, com maior ênfase na prática e na integração com a realidade do mercado, de modo a formar profissionais que possam contribuir efetivamente para a transformação socioeconômica do individuo e do país.

O DILEMA ENTRE EMPREGO E EMPREENDEDORISMO

O cenário atual impõe um impasse a muitos profissionais: aceitar empregos formais com pouca perspectiva de crescimento ou arriscar-se no empreendedorismo, mesmo sem preparo adequado. Profissionais qualificados muitas vezes se veem ocupando cargos que não exigem sua formação, o que gera frustração, desmotivação e um sentimento de estagnação. Esse desalinhamento entre qualificação e função compromete a continuidade de uma trajetória técnica ou de aprofundamento profissional.

Ao perceberem a falta de espaço para crescer, inovar ou aplicar suas competências de forma mais plena — inclusive pela ausência de ambientes que favoreçam o intraempreendedorismo dentro das empresas — muitos optam por empreender. No entanto, o empreendedorismo exige um conjunto específico de habilidades e conhecimentos que nem sempre são considerados ou desenvolvidos por quem toma essa decisão por impulso ou por necessidade. Isso contribui para o alto índice de insucesso de novos negócios, reforçando o ciclo de insegurança e frustração.

Esse dilema evidencia uma lacuna estrutural: a falta de políticas de desenvolvimento de carreira dentro das organizações e a idealização de um empreendedorismo como solução para todas as insatisfações profissionais, sem o devido preparo técnico, emocional e estratégico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que temos presenciado no mercado de trabalho brasileiro é o acúmulo de sintomas de um sistema que insiste em operar no passado. A escassez de profissionais não é apenas um problema de qualificação técnica, tampouco se resolve com estímulos financeiros isolados. Trata-se de um espelho social que revela um profundo desalinhamento entre o que as empresas oferecem, o que os líderes praticam e o que as pessoas — especialmente as novas gerações — desejam e valorizam.

É preciso reconhecer que não estamos diante de um único problema, mas de uma teia complexa de causas que se retroalimentam: o despreparo de muitos jovens para a realidade do trabalho, a precarização das relações formais, a falta de políticas públicas que integrem cuidado e emprego, a bolha digital que aliena e ilude, e — acima de tudo — modelos de liderança ainda baseados no controle, na escassez e na desconfiança.

Diante desse cenário, é legítimo perguntar: quantas demissões, quanto turnover, quantos processos seletivos frustrados, quantas metas não batidas, quantos talentos desperdiçados ainda serão necessários para que empresas comecem a repensar seriamente sua cultura de gestão?

Até quando, líder, gestor e empresário, você vai insistir em manter o mesmo modelo esperando resultados diferentes?

Autor: Daniel Fünkler Borelli

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